Autor: Filipe Manuel Neto
**Grandioso, opulento, verdadeiramente rigoroso na forma como retracta o comportamento e as convenções sociais da época, mas sem muita história para contar.**
Fazer filmes de época é um desafio para qualquer director, na medida em que o rigor histórico é algo verdadeiramente importante e difícil de atingir. Tão difícil que muitos filmes optam por relativizar a sua importância e fazer filmes que retractam mais facilmente a maneira como nós, no século XXI, vemos o passado, do que o passado propriamente dito. No entanto, Scorcese foi capaz de nos dar um filme que ultrapassa essa dificuldade na maior parte do tempo.
A história deste filme é tão banal que pode ser decepcionante: no final do século XIX, a elite de Nova Iorque vive fechada no seu próprio mundo, presa às suas convenções sociais, copiadas do Velho Mundo, alheia a tudo o resto, e quando acontece alguma coisa que vai contra as regras sociais, o ostracismo é garantido. É neste meio que vive Newland Archer, que está noivo da jovem e pura May Welland. Tudo parece perfeito, mas a chegada da condessa Ellen Olenska, que volta da Europa a fim de fugir a um mau casamento, promete colocar em perigo os planos de casamento, na medida em que ela foi o amor de juventude de Newland e parece importar-se pouco com as convenções sociais vigentes.
Eu creio que entendo porque este filme acabou esquecido hoje em dia. É um filme morno, na medida em que o roteiro conta, simplesmente, uma história banal de um triângulo amoroso de época cheio de idas e vindas, trocas de cartas e emoções reprimidas. E é presunçoso pois dá a si mesmo ares de superprodução dramática sem ter um roteiro que o sustente e o justifique. O problema do filme não é a restrição de emoções das personagens. Isso é algo que se espera num filme ambientado na elite do século XIX, para quem as emoções eram coisas que não deviam existir em público, mesmo entre marido e mulher. O problema deste filme é que, além de fazer um bom retracto dos comportamentos e mentalidade da época, muito fiel à verdade histórica e ao meio social, não tem mais nada para dar ao público. Falta história, falta enredo e o filme não é capaz de compensar essa ausência.
O elenco é composto por nomes fortes do cinema, começando pelo gigantesco Daniel Day-Lewis, um verdadeiro camaleão. Ele encarnou perfeitamente a sua personagem, um homem bem-nascido e educado, que sabe o seu lugar e o que se espera dele. O actor foi excelente na tarefa de mostrar isso, mostrando-nos também a confusão mental da sua personagem quando os sentimentos e a paixão tentaram contrariar o rumo bem dirigido que queria dar à sua vida. Winona Ryder é perfeita no papel de uma jovem casadoira e profundamente ingénua, criada quase dentro de uma redoma de cristal, mas com um coração generoso e uma alma nobre, em contraste profundo com a personagem quase disruptiva de Michelle Pfeiffer. Neste filme, ela é a mulher elegante e sedutora, com passado duvidoso e polémico, que irrompe pela cidade e se comporta livremente, sem ligar às convenções, chocando os mais conservadores, e que acaba por descobrir, perturbada, que a América não é mais livre ou aberta que os países europeus de onde ela resolvera sair.
Tecnicamente, o filme é extraordinário. O estilo de Scorcese está lá, porém discreto, tão subtil quanto as emoções demonstradas pelas personagens. Pachorrento e vagaroso, o filme arrasta-se bastante enquanto passeia do teatro para o salão de baile e para o jardim elegante. A voz um pouco monocórdica e profunda de Joanne Woodward não ajuda e torna o filme ainda mais pesado. Visualmente, é um filme opulento, grandioso, com cenários meticulosamente feitos e adereços detalhados, além de ter os melhores figurinos de século XIX que eu já vi num filme de longa duração. Tudo respira ostentação e rendeu ao filme um Óscar mais do que merecido.
Mas é, sem dúvida, um filme entorpecente e capaz de adormecer o espectador menos sensível ao rigor histórico. A nossa mentalidade actual encara mal a contenção das emoções, mas era o padrão de mentalidade do século XIX e o filme nada mais faz do que mostrar isso e ser bom nessa tarefa. É pena que a história contada não seja tão boa e não seja capaz de acompanhar o esforço de rigor dando-nos um romance verdadeiramente envolvente ou comovente. Sem isso, o filme assemelha-se a uma caixa de presente, brilhantemente embrulhada e com um grande e vistoso laçarote em cima, mas que possui dentro apenas um porta-chaves barato.
Em 24 Jun 2020