Autor: Filipe Manuel Neto
**Um filme de grande qualidade, ainda que bastante marcado pela dualidade do roteiro e por um excessivo apelo emocional.**
Este filme, para mim, tem um grande ponto a favor e um grande ponto contra ele. O ponto em favor dele consiste no facto de que se baseia de forma consistente numa história verdadeira, e até onde consegui perceber, foi relativamente fiel aos acontecimentos. O ponto contra é o facto de ser um daqueles filmes que, constantemente, apela ao emocional do público para ter alguma capacidade de captar a nossa atenção. Não é particularmente agradável ter de ver um filme que quase nos obriga a ter uma caixa de lenços de papel ao lado do início ao fim.
O roteiro conta-nos a história de uma criança indiana, muito pobre, que gosta de brincar com o seu irmão junto das linhas de comboio. Acontece que, um dia, as coisas correm realmente mal e Saroo – assim se chama a criança – acaba preso num comboio que se põe em marcha, levando-o até novas paragens, e separando-o do irmão e da família. Perdido, sem saber como retomar o contacto, ele acaba num orfanato. Ali, vai ser adoptado por um casal australiano, e criado com todas as meiguices. Mas ele nunca se esquece da mãe e, já adulto, resolve voltar à Índia para a encontrar.
Após o sucesso de “Quem Quer Ser Bilionário”, parece que o cinema ocidental se encontra permeável e aberto ao que de melhor se faz em Bollywood. Este filme não é indiano, mas tem actores de origem indiana e teve boa recepção, com boas críticas e uma boa bilheteira. O filme “limpou” os prémios de cinema australianos e venceu alguns prémios BAFTA, mas perdeu os Óscares para os quais havia sido nomeado e foi categoricamente ignorado pelos Globos de Ouro. Aliás, já que falamos nisso, é bastante difícil de entender como Dev Patel e Nicole Kidman – os protagonistas do filme e seus principais actores – acabaram por ser nomeados para Óscares nas categorias de Actor/Actriz Secundário/a! A única razão que vejo para esta “desclassificação” é uma tentativa possível de não os colocar no caminho dos “favoritos” às duas estatuetas, nomeadamente Ryan Gosling, Emma Stone e Casey Affleck. Fosse de que modo fosse, o filme foi um dos “derrotados” da noite de Óscares desse ano.
O filme é solidamente protagonizado por Dev Patel, um actor que consolida, assim, um estatuto de estrela internacional e que lhe garante um espaço, se ele quiser, no cinema norte-americano. Ele só aparece perto do meio do filme porque a história começa na infância da personagem, no entanto, não hesitou e, confiantemente, agarrou na sua personagem com carisma e talento. Por seu turno, Nicole Kidman também não perde a oportunidade de fazer mais um trabalho muito bem feito. Menos interessantes, David Wenham e Rooney Mara fizeram o que podiam com duas personagens bastante pouco desenvolvidas.
Um dos problemas do filme é a sua dualidade: desenvolvido em duas metades (a primeira focada na infância da personagem principal, e a segunda na busca que faz pela mãe, já na vida adulta), são bastante diferentes entre si. Não vou dizer qual é a melhor, acho que isso é algo relativo e que diz mais de quem vê do que da obra, mas posso dizer que gostei mais da segunda, mesmo que me pareça menos coerente que a primeira, mais sólida, mas também mais melodramática. Sobre isso, é necessário louvar o trabalho do jovem Sunny Pawar que, com uma interpretação de características exigentes em que brilhou, sustenta uma parte do filme que, sem ele, seria muito menos interessante.
Tecnicamente, o que eu mais apreciei e sinto dever elogiar é a qualidade da cinematografia, que é límpida, nítida, excelentemente enquadrada e com magníficas cores. Os cenários e os figurinos também são muito bons, e a escolha criteriosa dos locais de filmagem permite a inclusão de um belo conjunto de paisagens. Acerca deste assunto, vale a pena ver com atenção o começo deste filme. A banda sonora e os efeitos visuais e sonoros completam tudo isto com toques subtis, de grande qualidade.
Em 07 Jan 2023