Autor: Filipe Manuel Neto
**Um esforço digno de mérito, mas que não redundou num trabalho realmente bom.**
Kenneth Branagh é um daqueles actores/directores que não parece ter medo de desafios, e eu respeito-o por isso, ainda que as suas opções nem sempre sejam as mais sábias. Trazer para o cinema o maior livro da obra de Agatha Christie é um desafio considerável, não só atentando à riqueza do material e personagens, mas também tendo em consideração a relevância da obra e os admiradores que se mantêm fiéis aos livros da autora (eu sou um deles). Não posso deixar de dizer: para mim, é das maiores escritoras do século XX. Não só ajudou a cimentar a narrativa policial como a desenvolveu de modo substantivo. Por isso, não posso deixar de condenar em absoluto as recentes notícias sobre a revisão aos livros, cujas novas edições irão ser despidas de qualquer termo, palavra ou menção minimamente ofensiva. No século XVI, queimavam-se livros. Hoje, apesar das justificações, nós refinamos as práticas, mas mantemos a linha de pensamento e a semelhança nas atitudes para com livros que nos podem ofender.
O “Expresso do Oriente” já foi adaptado para as telas por várias ocasiões. A primeira, em 1974, foi um autêntico espectáculo e está carregada de actores de nível estelar. Contudo, não se pode ignorar a adaptação televisiva protagonizada por David Suchet, actor que, numa tour-de-force de muitos anos, encarnou Poirot de uma maneira impecável e difícil de igualar.
O filme tem os seus méritos, os quais assentam essencialmente no visual. A cinematografia faz um uso inteligente da luz, das espectaculares paisagens nevadas e da elegância vintage do comboio, que replica o Expresso do Oriente, um comboio verdadeiro que, apesar de inúmeros percalços empresariais, ainda existe. Os trajes e os adereços também são magníficos e ajudam a recriar a época, os anos 30. Uma nota especial para a forma como o filme nos consegue dar a perfeita sensação da pequenez dos espaços. Outro ponto pacífico é a actuação do elenco. Não estarei a ser injusto ao dizer que cada um fez um bom trabalho com o material recebido. Sem surpresas, Branagh é o protagonista e dá-nos um Poirot que se vai humanizando gradualmente. Ele começa por ser um individuo esquisito, uma fábrica de dedução aplicada a resolver crimes, e acaba com outra perspectiva da verdade e da justiça. Isso é o ponto focal do livro. O trabalho de Judi Dench e Michelle Pfeiffer também merece uma nota especial. Os outros – e o filme impressiona por ter um elenco tão pesado – parecem estar ali apenas para poderem dizer que trabalharam com o director e que fizeram parte do projecto.
Tudo isto são coisas boas! Todavia, o filme não estar livre de problemas graves. O maior e mais flagrante são as cenas de acção. Poirot é um elegante, um maníaco, um génio, mas nunca foi uma figura de acção ou andou à porrada. Nos livros, ele deixa isso para a polícia ou para os amigos leais, como o Capitão Hastings ou o Inspector-Chefe Japp. Vê-lo em cenas de acção não parece coisa que ele faria. Branagh errou aqui, da mesma forma que errou com aquele bigode mal penteado e de mau gosto. Os livros têm várias descrições do bigode de Poirot e nenhuma delas se adequa ao adereço capilar usado neste filme, e que mais parece uma ratazana morta. A personagem é, também, despida de boa parte das suas inúmeras obsessões, limitando-se a uma mania ligada aos ovos cozidos. É absurdo! Branagh, que nem sequer parou para pensar que não é minimamente parecido com a personagem, não considerou o formato da cabeça de Poirot, que é descrita como “ovoide”, e nem tentou reproduzir o andar da personagem, que caminhava em passos pequenos. E considerando a elegância e refinamento que a caracterizam, as roupas que Branagh usa e a quase ausência de chapéu são detalhes inqualificáveis. O filme – que se concentra em Poirot – também faz um aproveitamento muito raso do material de cada personagem. Algumas das que mais dialogam com o detective no livro, como Debenham, não são muito aproveitadas aqui. Por fim, temos Johnny Depp, um erro de casting, a transformar Rachett numa espécie de mafioso amador e odiável.
Em 08 May 2023