Autor: Filipe Manuel Neto
**Um videojogo muito caro feito para pessoas que nunca foram à guerra, sem qualquer base em factos históricos verdadeiros e que quase insulta a história da Grécia.**
Há uns anos, eu escrevi um pequeno texto para o filme “300”, que achei detestável e um insulto a quem conhece minimamente a história da Grécia. Infelizmente, os romances gráficos de Frank Miller mostram que, para ele, a história não é muito importante. Eu não esperava que estes filmes fossem documentários, mas a quantidade de exageros e de anacronias absurdas é insuportável. Quando eu estudei História da Grécia na faculdade, tive de ler um livro bastante completo sobre o tema (entre outros, mas esse marcou-me particularmente). Adoraria poder usá-lo para esbofetear Miller e os produtores deste filme com toda a força.
A grande – e única – qualidade redentora deste filme é a sua exuberância visual, obtida à custa de quantidades colossais de CGI de grande efeito, que amplificam ao extremo as cenas de luta e dão ao filme o aspecto de um videojogo extremamente caro. O uso do slow-motion, os vários efeitos sonoros usados, tudo serve para amplificar os combates e dar-lhes um aspecto glorioso, coreografado e falso. Eu costumo dizer que só gosta da guerra quem nunca teve de participar numa, e ao ver tamanha atracção homoerótica pela guerra, e por corpos nus e atléticos a jorrar sangue, estou bastante certo que, neste filme, muito poucos passaram por uma guerra a sério.
Sullivan Stapleton e Eva Green são os dois únicos actores que merecem alguma atenção aqui, e isso deve-se ao protagonismo das suas personagens, versões ficcionais e carnavalescas de duas personagens históricas verdadeiras: Temístocles e Artemísia. A sorte de ambos os actores é que não houve muita preocupação em ser historicamente rigoroso: Temístocles e Artemísia eram mais velhos do que estes dois actores. Ele era, acima de tudo, um político ateniense com muita experiência pública aquando dos acontecimentos deste filme, ao passo que ela era uma rainha, a viúva do Sátrapa da Cária. E ao contrário do que o filme diz, ela não comandou a frota persa, embora tenha sido uma das comandantes principais.
Como disse, o filme está cheio de imprecisões históricas: as Guerras Médicas começaram com a anexação da Lídia por Ciro o Grande, o primeiro monarca aqueménida da Pérsia. Incluídas na conquista estavam as cidades da Jónia, culturalmente gregas e submissas à Lídia. Elas tentaram separar-se com apoio de Atenas, mas o imperador Dario I venceu-as, indo contra os atenienses. É então que Temístocles surge, defendendo a criação de uma frota ateniense capaz de fazer frente à armada persa, e que se dá a vitória de Maratona, obra do seu rival político Milcíades. Dario I morre (de causas naturais, esqueçam o filme) e sucede-lhe Xerxes. Seguiu-se, como é sabido, o Combate de Termópilas, onde morreram mais de mil e quatrocentos gregos (e não só os famosos Trezentos). Ao mesmo tempo, travou-se nos mares a Batalha de Artemísio, em que Temístocles travou a frota persa. Xerxes segue rumo a Atenas, que é evacuada apressadamente por mar antes de os persas saquearem e incendiarem a cidade. É Temístocles quem decide, então, fingir-se traidor e sugerir a Xerxes um ataque decisivo à frota grega na Baía de Salamina. Ali, a coberto de uma baía apertada, a qualidade dos navios gregos mostrou-se decisiva.
O que deu a vitória aos gregos não foi a glória, o heroísmo vazio, os músculos ou os abdominais trabalhados. O que lhes deu a vitória foi a inteligência, a escolha de líderes aptos quando isso era vital e a escolha de tácticas militares que contrabalançavam bem os números do invasor. Os persas eram muitos, mas as suas tropas não tinham comparação com a falange grega coberta de aço (eles não combatiam em cuecas, como nos mostra o filme!): ao contrário dos gregos, os persas não usavam armaduras de metal, tinham escudos feitos de vime entrançado e traziam, essencialmente, arqueiros, fundibulários, lanceiros de lança curta e muita cavalaria. Da mesma forma, os persas tinham imensos navios, mas a qualidade da sua frota era muito fraca quando comparada com as galés atenienses e coríntias. A vitória grega foi, essencialmente, um triunfo da técnica e da inteligência sobre a força bruta e numérica. E disso, este filme não nos fala.
Em 24 Apr 2023