Autor: Filipe Manuel Neto
**Um clássico, de pleno direito.**
Há alguns anos atrás, eu vi o remake moderno deste mesmo filme. Agora chegou finalmente a vez deste, que acabei de ver há poucos minutos. Feito em 1976, o filme tornou-se um clássico e sobreviveu muito bem ao teste do tempo. Na verdade, eu diria que é um daqueles filmes de terror antigo que qualquer apreciador do género tem obrigatoriamente de ver.
Não me vou alongar muito a descrever a história, penso que é sobejamente conhecida. Foi inspirada num romance original de Stephen King (de acordo com as informações existentes aqui, o escritor gostou imenso deste filme, e chegou a considerar o final melhor do que aquele que tinha escrito originalmente), narra a história de Carrie White, uma jovem adolescente que é extremamente ingénua e que viveu toda a vida sob a supervisão da mãe, super-protectora e fanática religiosa, obcecada com o pecado da carne e a fraqueza do sexo feminino. Ela é alvo da chacota das colegas de escola e isso piora muito após ela entrar em pânico com a sua primeira menstruação, no balneário do ginásio. Ela simplesmente não sabia nada acerca do seu próprio corpo e da sexualidade porque a mãe estava segura de que uma mulher sem pecado (como a sua filha tinha obrigatoriamente de ser) nunca seria “maculada” pelo sangue que, para ela, era a marca do pecado original de Eva. Bem, as coisas pioram a partir daí, com Carrie a descobrir que tem poderes telecinéticos amplificados pelo medo ou raiva, e um final antológico num baile de finalistas que corre terrivelmente mal.
O segredo do sucesso deste filme deve-se muito à personagem principal. Para nós, é claro que Carrie é uma vítima: vítima de uma mãe perversa e louca que a maltrata e exerce verdadeiro terror psicológico permanente; vítima de colegas de escola cínicas e egoístas que não pensam nunca nos motivos pelos quais ela se comporta daquela forma e nunca lhe dão chances de se integrar; e finalmente vítima de um poder mental extremamente raro e que ela não conhece bem nem sabe como controlar. Carrie nunca é verdadeiramente uma má pessoa, ou um ser perverso. Ela não tem prazer na dor alheia, ela é que está a sentir dor e sofrimento. Isso mexe connosco, provoca uma forte empatia com a personagem, que gostaríamos de ajudar. O modo como tudo termina parece cheio de uma justiça poética que também nos satisfaz, apesar de sentirmos por Carrie, e vermos que ela nunca será compreendida por ninguém.
Sissy Spacek foi extraordinária no seu trabalho e obteve, neste filme, a sua grande obra como actriz. Apesar de ter continuado e ter feito outros filmes, é Carrie que imortaliza Spacek e faz dela uma actriz memorável. Ela imprimiu enorme profundidade psicológica e dramatismo à personagem, além de ter tido força para algumas cenas de nudez tão brutais, pela sua dureza, que outras actrizes com mais experiência seguramente as recusariam sem pensar duas vezes. O filme conta ainda com as participações de Piper Laurie (no papel da mãe de Carrie), Amy Irving e John Travolta.
Dirigido por Brian De Palma, director reconhecido pelo espírito meticuloso e pela atenção aos detalhes, é um filme com bons valores de produção e um ritmo excelente, com tempo para tudo, sem pressas nem atropelos. A cinematografia merece um olhar atento com uma série de momentos verdadeiramente bem conseguidos, desde o uso das cores (o branco e o vermelho, como na noite do baile) ao trabalho da câmara (as cenas no baile, o caleidoscópio, o recurso pontual à divisão do ecrã), tudo foi extremamente pensado e feito com grande ponderação. Por mais de uma ocasião, o filme “pisca o olho” a Hitchcock, sendo o recurso mais evidente o famoso efeito sonoro do filme *Psico*, aqui aproveitado por De Palma. Os efeitos sonoros, visuais e especiais funcionaram perfeitamente, muito embora o incêndio na casa, na parte final do filme, torne bastante evidente que a casa é uma miniatura e não um prédio verdadeiro, bastando para isso uma certa noção de escala. Os figurinos também merecem um aplauso, enquadram-se perfeitamente no panorama geral. A banda sonora, de Pino Donaggio, é das mais bonitas do cinema clássico de terror. Verdadeiramente uma melodia magnífica e que fica no ouvido.
Em 31 Oct 2020