Autor: Filipe Manuel Neto
**Um filme com muita qualidade, mas também com alguns erros difíceis de perdoar.**
Este é um daqueles filmes acerca do qual ouvi falar muita coisa antes de decidir, realmente, sentar-me a vê-lo. É considerado por muitos como um dos maiores musicais de sempre e eu posso concordar que é realmente muito bom e tem condições para merecer esse galardão. Porém, não foi totalmente do meu agrado, como terei hipótese de explicar.
Fortemente inspirado na história clássica de Pigmalião, o roteiro leva-nos até aos primeiros anos do século XX para conhecer um linguista fanfarrão chamado Prof. Henry Higgins. Ele é um perito em línguas e em dicção, e está plenamente convencido de que a maioria dos britânicos não sabe falar correctamente a sua língua (a minha dúvida é se há, em qualquer país, assim tantas pessoas que prezem a sua língua materna). E para provar a utilidade desse domínio resolve levar para própria casa uma mulher muito simplória e popular, a vendedeira de flores Eliza, e treiná-la como um cachorro. Quando tudo acaba, ele efectivamente conseguiu uma grande mudança na jovem, tanto ao nível da fala e dos comportamentos, quanto ao nível da mentalidade e expectativas de vida.
Isto leva-me a falar do que mais me incomoda: a forma como aquela personagem irritante e presunçosa decide usar outra pessoa para os seus fins sem pensar nela. Higgins é um homem egoísta e presunçoso, além de ainda ser claramente misógino e pensar ter poder de moldar as pessoas à sua feição. Em adição, o roteiro confunde coisas distintas: saber falar bem e saber comportar-se na sociedade. Eu posso saber falar a minha língua da forma mais perfeita e não saber as regras que devo seguir num baile social ou jantar de gala. São coisas diferentes. A questão é abordada nas cenas em Ascott, mas ficamos sem saber como Eliza aprendeu a comportar-se daí para diante.
A nível técnico, o filme é incrível. Ele procura adaptar um musical da Broadway, mas também bebe muita inspiração de um filme mais antigo, dos anos 30. Assim, tem excelentes melodias e canções, as mesmas do musical original. Infelizmente, os actores quase não cantam uma sílaba: elas foram cantadas por profissionais fora do palco, numa péssima decisão dos produtores que indispôs bastante a própria Audrey Hepburn. Outra falha é a confusão na concepção da época: o filme passa-se em 1911 ou 1912, mas há um amplo conjunto de adereços posteriores e um momento em que o rei inglês não é o que de facto reinava na época. O filme compensa largamente estas falhas com uma excelente cinematografia, muito bem enquadrada e luminosa, recheada de cores vibrantes e intensas (nota: eu vi a versão restaurada do filme), e com figurinos incríveis, muito particularmente os que foram feitos para Hepburn, e que têm ainda hoje lugar em colecções particulares e museus: penso que um dos figurinos dela foi leiloado por uma fortuna há uns anos.
O elenco conta com vários actores de peso. Audrey Hepburn assume briosamente o papel de Eliza, que havia sido de Julie Andrews na Broadway, e aproveita esta ocasião para dar mostras inequívocas do seu talento. Porém, sinto que o filme não aproveita todo o potencial da actriz e não lhe dá margem para dar tudo de si mesma. Assim manietada, Hepburn faz o que pode, mas os fãs poderão vê-la em muito melhor forma noutros filmes. Quem domina mais a cena é Rex Harrison: o actor esbanja talento e parece perfeitamente talhado para a personagem que, de resto, fizera na Broadway por alguns anos. Não nos podemos esquecer das contribuições de Stanley Holloway e de Jeremy Brett, que fazem um trabalho bastante bom em personagens subaproveitadas.
Em 16 Jan 2024