Autor: Filipe Manuel Neto
**É um excelente filme, ainda que eu discorde da tese sobre a qual foi feito.**
No período entre as duas guerras mundiais, o mundo tentou fazer com que não voltasse a haver algo tão destrutivo e traumático como a Primeira Guerra Mundial. Todavia, tais decisões, muito louváveis, mas quiméricas e contrárias à natureza humana, falharam, como sabemos: a Segunda Guerra Mundial ocorerrá apenas alguns anos depois, quase como consequência directa da má gestão da paz, tão arduamente conseguida. Todavia, o Reino Unido (e outros países) procuraram evitar o novo conflito ao preferirem ignorar tudo o que se passava na Alemanha: a inflação de preços, a brutal crise económica, a insatisfação popular, a ascensão do radicalismo nazista e uma retórica cada vez mais brutal, extremada e violenta.
Lorde Darlington, a figura central deste filme, é o arquétipo de uma classe política britânica bem-nascida e inteligente, mas profundamente traumatizada pela Primeira Guerra Mundial e mais do que decidida a evitar uma outra parecida a essa. Stanley Baldwin, Neville Chamberlain e uma série de outros políticos pensavam de igual modo e procuraram, por diversos meios, apaziguar e chegar a acordo com Hitler, sendo depois duramente criticados pela forma como o fizeram. A bem dizer, eu não os posso criticar. Só quem nunca viveu uma guerra é que se pode dar ao luxo de não tentar impedir, por todas as formas, que aconteça mais uma, por muito justificáveis e até louváveis que sejam os motivos que a fundamentam. Portanto, começa aqui a discordância de fundo entre a forma como eu penso e a forma como este filme foi pensado e concebido.
Muitos, de facto, pensariam que o mordomo da Casa Darlington é a figura central deste filme, e de facto ele é o protagonista e a personagem principal, e é impecavelmente interpretado pelo sempre seguro Sir Anthony Hopkins. Todavia, as acções e o pensamento desta personagem são determinados, estritamente, pela sua lealdade canina ao seu senhor aristocrático, e à casa onde serve. Portanto, se Sua Senhoria pensa de determinada maneira, deve estar certo. E apesar de o filme criticar essa lealdade e falta de independência moral e intelectual, eu prefiro abster-me de o fazer. Como Lorde Darlington, também eu tenho pessoas que me servem, e eu aprendi a apreciar e a valorizar essa lealdade devotada, até porque não podemos, nos dias actuais, meter qualquer um a servir no interior das nossas casas. A lealdade, a honestidade, o respeito e o bom entendimento entre servo e senhor são, mais do que qualquer contracto ou pagamento, a base de um bom relacionamento numa situação assim.
Além de Anthony Hopkins, o filme conta com um excelente trabalho de Dame Emma Thompson, a qual faz um bom contraponto com o mordomo: se um é a razão e o tradicionalismo, o outro é a inovação, a quebra das convenções, a emoção. Por isso, eles complementam-se e criam uma boa amizade, apesar de serem muito diferentes e, muitas vezes, não concordarem. O filme faz uma agradável abordagem a este relacionamento, tornando a sub-trama entre ambos um ponto altamente importante da trama geral. O filme conta ainda com boas interpretações de James Fox, Christopher Reeve e Hugh Grant.
A nível mais técnico, temos de destacar a escolha dos locais de filmagem, que construíram uma Darlington House fictícia a partir de algumas das mais belas e significativas casas nobres inglesas, o que torna o filme num autêntico passeio por estas peças ímpares de património e cultura. No interior de algumas delas, sente-se ainda o espírito britânico, de cavalheirismo, sobriedade e estoicismo. A cinematografia é o padrão que se usava em 1993 e não traz surpresas, embora o trabalho de filmagem mereça uma nota positiva. Os cenários e, especialmente, os figurinos e os adereços, merecem ser vistos com atenção pela forma como recriam a época. A banda sonora é outro ponto que também merece ser destacado, sendo emotiva e marcante sem se impor de modo estridente.
Em 24 Nov 2022