Autor: Filipe Manuel Neto
**Excelente montagem, edição e um enredo apelativo, que transmite uma mensagem edificante num filme que soa insosso e parece feito para a TV.**
Este filme é bastante interessante por vários motivos, e eu consigo compreender porque razão ganhou o Óscar de “Melhor Filme” em 2006: é um filme de mérito que conjuga várias histórias em torno de um tema que foi pertinente naquele ano: o racismo e o preconceito. Naquela altura, muitas pessoas pensaram que o filme venceu este prémio para que ele não fosse parar a filmes mais “gay friendly” (estou a falar de *Capote* e *O Segredo de Brokeback Mountain*, também nomeados), mas penso que isso é uma ideia injusta. *Colisão* é um filme com bastante mais mérito do que aparenta, apesar de ter passado despercebido quando passou pelos teatros.
O roteiro interliga uma série de histórias e sub-enredos isolados em torno de um único tema: o preconceito, a forma como julgamos alguém pela sua cor, etnia ou origem social. No filme isso é o grande leitmotiv que une e interliga todas as histórias, tornando o enredo muito difícil de descrever sucintamente. As personagens não se conhecem, não estão ligadas entre si, mas vão-se cruzando e conhecendo por meio de situações casuais, que poderiam acontecer até a nós mesmos: uma ida a uma loja, a reparação de uma fechadura, o roubo de um carro, uma operação rotineira de polícia. É preciso estar com alguma atenção, e mesmo assim garanto que muitos detalhes intencionais vão passar despercebidos – eu tive de ver o filme três vezes para poder avaliá-lo com justiça e escrever esta crítica custou-me algumas horas de leitura também.
Outro detalhe importante deste filme é a extrema qualidade dos diálogos. Não há teatralidade ou politicamente correcto: um preto é um preto. A linguagem é bruta, embora não recorra aos palavrões ou ao calão pesado. A forma como afecta as personagens é genuína e nós podemos colocar-nos na pele delas, sentir o quanto isso é ofensivo. Sob esse aspecto, é um filme que pode ser bastante duro de aguentar, principalmente para quem já tiver passado por situações de preconceito ou discriminação. Claro, é um filme assumidamente militante e com um certo cunho moralizante, dado que tenta passar uma mensagem anti-racista e defender essa ideia, mas o cinema está cheio de filmes assim e isso só vai desagradar a quem defender o oposto ao que o filme defende. Pessoalmente, lidei muito bem com isso.
Apesar de o filme ter um elenco criteriosamente seleccionado, e com alguns nomes sonantes da indústria, não podemos dizer que há um protagonista. Todos são protagonistas na história que lhes diz respeito. Pessoalmente, gostei da performance de Matt Dillon, no papel de um polícia racista e de Ryan Phillippe no papel do seu parceiro novato e mais sensível ao racismo; Don Cheadle veste a pele de um investigador policial; Sandra Bullock e Brendan Fraser dão vida a personagens da elite branca; Thandie Newton e Terrence Howard foram excelentes no papel de membros da elite negra e Larenz Tate e Ludacris são bons no papel de marginais; o filme conta ainda com as excelentes actuações de Michael Peña, Bahar Soomekh, Loretta Devine, Jennifer Esposito, Howard Fong e Shaun Toub. Claro, dado o tema do filme muitas das personagens – para não dizer quase todas – vão ter atitudes que nos vão desagradar, mas isso faz parte do filme, elas foram pensadas assim.
Tecnicamente, o filme tem um dos melhores trabalhos de edição e montagem que já vi em muito tempo: apesar do intrincado enredo e da mistura de histórias, tudo é lógico e está no lugar certo, justificando o Óscar de Melhor Edição que também recebeu., O filme corre a um ritmo bastante agradável também, sem perder tempo. Mas é basicamente apenas isso! O filme transmite a sensação de ter sido pensado para a TV e é marcado por elementos técnicos sem qualquer interesse: é o caso da cinematografia, dos figurinos e cenários e da banda sonora quase atonal. Tecnicamente, é um filme que eu compararia a comida sem sal: não tem sabor nenhum.
Em 09 Oct 2020