Autor: Filipe Manuel Neto
**Um exemplo perfeito de como o desrespeito ao passado e à História pode aniquilar totalmente um filme, mesmo sendo ficção.**
Gosto bastante de ver filmes de época, apesar de a minha formação como historiador me causar alguns anticorpos, por razões ligadas à costumeira falta de habilidade em harmonizar a liberdade criativa e o rigoroso respeito pelos factos históricos e pelos costumes de cada época. Assim, foi com alguma curiosidade que decidi ver este filme. Após ver o filme, a minha vontade era só esbofetear o director Dominic Sena e o roteirista Bragi Schut. Nenhum merece qualquer respeito pelo que foi feito aqui. O filme é um insulto aos historiadores… ainda que não seja deliberado!
O roteiro é o maior problema do filme, com uma escrita que parece colar fragmentos de várias histórias diferentes: começamos nas Cruzadas, seguimos dois cavaleiros em vários episódios de natureza militar e, depois, de modo um pouco brusco, eles abandonam voltam as costas à Igreja (supostamente) e vão embora, presumo, para a sua terra de origem. Acontece que, no caminho, se deparam com a Peste, sendo que há uma mulher, supostamente bruxa, que foi presa, acusada de provocar a doença. Agora, cabe-lhes a tarefa de escoltar a alegada bruxa até um mosteiro onde uns frades a vão julgar, à luz de um livro que não existe em mais nenhum lugar do mundo.
Quando se faz um filme de fundo histórico, no mínimo, deve pedir-se o apoio de um consultor, alguém que realmente saiba de História. Ninguém deve ter a presunçosa arrogância de pensar que sabe tudo e muito menos de tomar o público por idiota, pensando que engolirão tudo o que lhes for mostrado! Este filme é um autêntico estudo de caso sobre anacronias cinematográficas! Como pode a produção admitir a colocação de peças decorativas nitidamente barrocas em meio a um cenário medieval? Como diabos podem colocar personagens a desinfectar as mãos com álcool se isso era algo totalmente desconhecido ao homem medievo? Desde quando é que existe mar na Estíria se essa antiga região é uma parte interior da Áustria e Eslovénia actuais? Como podem as personagens desertar se esse conceito militar simplesmente não existia na época?
E se estas pequenas questões parecem algo sério, há algo muito pior: as Cruzadas foram todo um esforço religioso, político e militar que envolveu a Cristandade durante cerca de 300 anos, mas esse esforço praticamente já tinha terminado décadas antes da Peste Negra, e muito antes das datas que o filme utiliza para os combates onde as personagens tomam parte. Não houve, de facto, cruzadas sérias no século XIV. A Batalha de Artah, mostrada no filme, aconteceu duzentos anos antes, em 1105. Portanto, o filme deliberadamente atrasou as Cruzadas duzentos anos para quase coincidirem com a Peste Negra, e as personagens poderem assim participar em ambas as situações! É absurdo! Outra coisa que simplesmente não existia na Idade Média era a noção de caça às bruxas! Claro, para o homem medieval, o Diabo era uma ameaça relevante, e claro que havia relação entre a arte diabólica e os trabalhos e estudos de muitos eruditos, alquimistas ou sábios que contrariavam o saber da Igreja. Mas as perseguições à bruxaria só começaram a ser mais notáveis no século XVI, enquadradas numa resposta clerical à Reforma e às ideias (todas elas) que colocassem em perigo o domínio que a Igreja detinha sobre o conhecimento!
Tenho pena de Nicolas Cage e Ron Perlman. Eles são actores que respeito, e vê-los participar de um filme tão mal feito é bastante lamentável, dado que eles têm talento e são, até onde eu vi, quase as únicas coisas positivas a destacar. Mesmo que tudo tivesse sido feito de maneira a respeitar o passado e a história, o fim do filme é tão inacreditavelmente idiota que deitaria por terra qualquer esforço prévio, e o resto do elenco, com excepção dos dois nomes citados, não se destaca de qualquer maneira.
Em 08 Sep 2022