Autor: Filipe Manuel Neto
**Inteligentemente comovente.**
Não sei se ainda há filmes que me consigam surpreender pela positiva… mas este filme foi capaz disso. Creio que não é um filme perfeito, há algumas falhas e fragilidades no roteiro, se tivermos tempo para o analisar mais profundamente. Após alguma leitura percebi que o filme se baseia, muito vagamente, numa situação real ocorrida na Áustria há pouco mais de quinze anos, e que foi um verdadeiro filme de terror transformado em realidade.
O filme é profundo e tocante sob vários prismas. Primeiro, porque nos traz uma história cruel de privação de liberdade, de violação, de abuso e sofrimento. Segundo, porque nos conta tudo isso na perspectiva inocente de uma criança que nunca viu o mundo para além do quarto onde nasceu, e onde vive aprisionada com a sua mãe, às mãos de um homem cruel, que é também o seu pai biológico, mas que o filme claramente irá deixar claro que não é o pai do menino. E de facto, que pai mereceria ser tratado como tal após fazer algo assim a um filho, não é verdade? O filme é verdadeiramente bonito e elegante, e harmoniza maravilhosamente a perspectiva da criança, que vê o mundo e as coisas à maneira dela, e a perspectiva da mãe, que é basicamente a nossa também, e que tem clara noção do que se passa e do drama que vive.
Apesar da dureza da história contada, o filme nunca se assume como um thriller ou um filme de drama. Na verdade, há um toque de conto de fadas que suaviza bastante a tónica e o ambiente do filme. Em nenhum momento nos sentimos verdadeiramente tensos, apesar de a situação das personagens ser tensa e não perspectivar grande êxito. A segunda metade do filme é ainda mais suave e mais luminosa, e mostra a forma como mãe e filho vão tentar reerguer as suas vidas e a sua família após toda aquela tragédia.
O filme não tem um elenco amplo, e as personagens têm tempo de sobra para se desenvolver e assumir ‘nuances’ e contornos psicológicos complexos. As mais desenvolvidas e interessantes são claramente a Mãe e o seu filho, Jack. E Brie Larson foi incrível na forma como deu vida a esta mãe desesperada e corajosa. Ela foi capaz de um dos trabalhos dramáticos e interpretativos de maior brio e profissionalismo que vi em algum tempo, e mereceu com toda a justiça os prémios que arrecadou com este filme. Jacob Tremblay, que deu vida a Jack, também merece parabéns. Ao que parece, e apesar da tenra idade, ele já tinha alguma experiência como actor quando fez este filme, mas não há dúvidas que raramente vemos actores tão jovens a brilharem de forma tão completa. Ele fez um trabalho melhor do que muitos adultos teriam feito, isso eu tenho a certeza. E a forma como ambos os actores se relacionam diante da câmara é magnífica, digna, credível e genuína. Também gostei bastante do trabalho de Joan Allen e de Sean Bridgers, apesar de o filme não nos revelar o que acontece ao vilão, que simplesmente desaparece.
Tecnicamente, é um filme soberbo e inteligente. Uma coisa que eu observei atentamente, e que não queria deixar passar em branco, foi a qualidade dos diálogos, em particular os monólogos de Jack, em que ele faz observações muito pertinentes e inteligentes ao mundo que o rodeia. É maravilhoso penetrar na mente da criança e ver o mundo com os olhos dela. A cinematografia é igualmente extraordinária, especialmente na primeira metade do filme, pela forma como a câmara consegue transmitir-nos a sensação de estar num espaço tão limitado. O cenário exíguo e a pequenez de todo o espaço físico das filmagens ajudaram claramente e a construção de todo o cenário e dos figurinos foi também uma aposta inteligente por parte de Lenny Abrahamson, o qual assegurou a direcção do filme. É um filme de ritmo lento, com tempo para muitas reflexões e divagações que nunca parecem estar a mais no filme. A banda sonora é bastante boa, mas não nos distrai do essencial, que é a história contada e a relação entre aquela mãe e o seu filho, e entre aquela criança e o mundo novo que se abre para ela.
Em 03 Jan 2021