Autor: Filipe Manuel Neto
**Uma distopia sci-fi com uma boa trama de conspiração política num filme que o cinema preferiu esquecer.**
Acho que já vi pelo menos uns vinte filmes do século XX, ou começos de XXI, onde os tempos futuros são mostrados com grande pessimismo. No caso concreto deste filme, os anos finais do milénio são representados como tempos de caos social e político, em que a sociedade caminha sem rumo definido, entregue a prazeres fugazes e actos criminais. E em meio à dissolução de costumes e valores surge um mecanismo que permite a gravação das memórias e sensações da pessoa que o usa, levando ao surgimento de um mercado negro de gravações ilícitas de crimes, sexo e actos controversos: assim, um homem que nunca roubou, matou ou traiu a esposa pode vivenciar tudo isso sem ter necessariamente de o fazer. Mas o que acontece quando uma gravação regista provas de um assassinato?
O filme tem qualidades e apresenta uma história que mistura sci-fi, thriller político e um pouco de romance, numa mistura que envelheceu muito bem, ainda que estejamos já bem dentro do novo milénio. O projecto começou perto de 1985, e é um dos poucos resultados da parceria (profissional e amorosa) de Kathrynn Bigelow e James Cameron. Ele teve as ideias para o roteiro, e ela assegura-nos a direcção elegante, a cinematografia impactante e adequadamente sombria, efeitos visuais e especiais eficazes e um ‘design’ de figurinos e cenários fortemente influenciado pela estética ‘punk’ e metal. O filme foi baptizado com o nome de uma música dos “Doors” e foi um tremendo fracasso comercial e de crítica. Por isso, talvez todos os envolvidos tenham preferido esquecer o filme.
Não posso deixar de considerar injusta a forma como o filme acabou esquecido: não é um filme perfeito, a história é complexa demais, parece empolada demais, como um balão de ar quente, e talvez seja excessivamente longo (menos trinta minutos de cenas mortas sem grande interesse teriam tornado as coisas mais dinâmicas). Porém, é um filme imersivo e que aborda, com alguma profundidade, o apreço das pessoas pelos prazeres momentâneos e por formas de escapar a uma realidade cruel e opressiva. Isso ainda é um assunto muito actual, assim como toda a trama em redor da violência policial excessiva. E por fim, não posso deixar de destacar a qualidade das filmagens “na primeira pessoa”, que aparecem nas ocasiões em que o mecanismo é usado e vemos as coisas pelos olhos da personagem.
Ralph Fiennes dá-nos um dos trabalhos dramáticos mais complexos e interessantes da sua carreira, aproveitando ao máximo a enorme multiplicidade de sentimentos e emoções algo contraditórias da sua personagem. Angela Bassett também brilhou neste filme, num papel intenso e cheio de acção. Juliette Lewis faz um trabalho bastante decente, especialmente quando canta, mas não posso deixar de considerar que a nudez da actriz é algo gratuita e exagerada, talvez para sexualizar a personagem. Michael Wincott é um vilão eficaz.
Em 02 Apr 2024