Autor: Filipe Manuel Neto
**Apesar das comparações serem naturais, é bastante mais brutal e cínico do que "Tudo Bons Rapazes" e merece ser apreciado pelo que é.**
Não sabia, quando fui ver este filme, que havia uma história verdadeira por trás. Mas isso foi algo que me saltou aos olhos, pela maneira como o filme apresenta a trama. Acabou por se tornar evidente que havia algo e isso foi um bónus num filme que, por si só, já é capaz de se revelar excelente. Apesar de todas as comparações com "Tudo Bons Rapazes", (eu mesmo não pude deixar de as fazer), não me parece que Scorcese tenha tentado repetir a dose, embora seja inegável que gosta de fazer filmes deste género, envolvendo a máfia ou o crime organizado ("O Irlandês", recentemente, e "O Lobo de Wall Street", por exemplo, para não mencionar o óbvio "Bons Rapazes").
O roteiro mostra a forma como dois mafiosos de Chicago conseguem controlar e dirigir um casino em Las Vegas até que os problemas conjugais, a traição e desconfiança, os vícios, a ganância e a brutalidade acabaram por levar à sua queda. Há uma série de sub-enredos que se vão desenvolvendo igualmente, mas tudo é brilhantemente orquestrado e conjugado por Scorcese. O filme tem todo o estilo dele e as suas três horas passam de forma rápida. O ambiente pesado, a violência brutal e crua, o uso corrente de calão e palavrões, tudo faz parte de um estilo que Scorcese associou aos seus filmes de gangsters. A cena de tortura onde a cabeça de um tipo foi esborrachada num torno é digna de antologia, e da mesma forma algumas das cenas onde Pesci se enfurece e começa a espancar brutalmente quem tem na frente.
Robert De Niro é um daqueles actores que nunca, ou quase nunca, falha. Ele trabalha lindamente com Scorcese, tal como Pesci. Os três colaboraram maravilhosamente aqui, e o resultado é uma combinação harmoniosa entre o trabalho do realizador e dos dois principais actores. Não há um momento fora de tom. A performance de Pesci foi mesmo a melhor da sua carreira, muito mais maturada e profunda que em "Tudo Bons Rapazes". Sharon Stone, por sua vez, teve de encarar uma personagem difícil, em que a beleza se associa a um certo espírito de sobrevivência e a um ciclo vicioso que acaba por levar a personagem à auto-destruição. É uma personagem que requer beleza, sensualidade, mas também imensa profundidade psicológica, e a actriz conseguiu-o brilhantemente, sendo mesmo nomeada ao Óscar de Melhor Actriz Secundária nesse ano e vencendo o Globo de Ouro na mesma categoria. Ela, tal como Pesci, consegue neste filme um dos melhores desempenhos da sua carreira (ou pelo menos de tudo o que eu já vi até agora). Além destes actores, o filme conta com boas adições como James Woods, Don Rickles, Kevin Pollak, Pasquale Cajano e Vinny Vella, entre outros.
Tecnicamente, é irrepreensível. Filmado no interior de um casino real durante as horas de encerramento, não se podia exigir cenário melhor ou mais pormenorizado. A fotografia e o trabalho de câmara foram também meticulosamente bem feitos e a edição, mistura e trabalho de pós-produção não têm mácula. O ritmo é bom, com as cenas tão bem encadeadas que toda a história é clara para o público, apesar das três horas de duração. Por fim, uma palavra para a banda sonora, que se harmoniza perfeitamente com o que o filme mostra e o ambiente geral.
Este filme não se limita a seguir na linha de "Tudo Bons Rapazes", muito embora haja semelhanças de estilo que derivam da presença do mesmo realizador e actores principais. É um filme diferente, menos simpático talvez, mais brutal, realista, intenso, por vezes cínico e profundamente crítico. Vale definitivamente a pena.
Em 16 Apr 2020