Autor: Filipe Manuel Neto
**Um filme de guerra soberbo, credível e sem heroísmos vãos, que nos mostra a dureza da guerra e a sua desumanidade.**
Este filme foi a coqueluche de 2019, e com bastantes motivos: conta com Sam Mendes a dirigir, com um roteiro baseado na história de guerra do seu avô e uma enorme produção, de altíssima qualidade e carregada de efeitos bem conseguidos. E claro, o filme foi feito no rescaldo das comemorações do centenário do final da Primeira Guerra Mundial, que se assinalaram em 2018. Compreensivelmente, foi a sensação das galas de prémios desse ano, em particular dos Óscares, onde estava nomeado em dez categorias, arrecadando três estatuetas: Melhor Mistura de Som, Melhores Efeitos Visuais e Melhor Cinematografia.
Acho que mesmo aqueles que sabem pouco de história reconhecerão na Primeira Guerra Mundial o momento em que a guerra clássica e cavalheiresca desapareceu para dar lugar à guerra industrial. Foi nesta guerra que assistimos ao desenvolvimento das metralhadoras (não eram novidade, mas tornaram-se equipamento padrão), ao surgimento dos primeiros tanques (podemos discutir se tiveram impacto significativo, para além do avanço técnico), das primeiras experiências de aviação de caça e reconhecimento, das primeiras tentativas de uso massivo de armas químicas (o gás mostarda, e outros do género) e mais inovações que tornaram as guerras mais sangrentas e mais desumanas do que até então. Também foi determinante no redesenhar das fronteiras mundiais, com o desaparecimento de impérios seculares e a ascensão de novas repúblicas, e em particular, da União Soviética. Por isso, é uma guerra que todo o mundo continua a recordar e que não deve ser menorizada.
O roteiro baseia-se numa missão suicida: para impedir o massacre de uma unidade inteira do exército britânico que, inadvertidamente, marcha rumo a uma armadilha, dois cabos têm de percorrer “terra de ninguém” e atravessar as linhas inimigas para os avisar e parar as suas movimentações. Detalhe adicional: um dos cabos é irmão de um oficial integrado na força militar prestes a ser aniquilada. A simplicidade absoluta deste roteiro torna-o tão crível e digno de verosimilhança que nós sentimos, imediatamente, uma forte empatia por tão empenhados soldados. A somar, temos a forte tensão, inteligentemente trabalhada por Mendes, que nos deixa constantemente na expectativa para ver o que vai acontecer. Todo o trabalho de direcção e de edição são dignos de ser estudados por alunos de cinema, e é verdadeiramente impossível apercebermo-nos dos cortes e da montagem.
Tecnicamente, o filme faz um uso criterioso dos efeitos visuais e do CGI, procurando ter o máximo de realismo e de credibilidade em vez de coisas vistosas e chamativas. Há uma boa dose de corpos e cadáveres humanos falsos ao longo de todo o filme, e nós ficamos com a sensação de que boa parte daquelas trincheiras eram, também, em larga medida, as sepulturas dos homens que ali estavam. Não é um filme cheio de sangue e gore, mas não é fácil de ver e é violento à sua maneira. Quanto ao realismo histórico, estou satisfeito: o filme baseia-se ligeiramente na Operação Alberich, que aconteceu de facto em 1917, e em que os alemães fizeram um recuo estratégico, abandonando trincheiras que deixaram armadilhadas e procurando posições mais fáceis de defender. A concepção das trincheiras feitas para o filme, e do ambiente nelas vivido, é uma das melhores recriações históricas deste ambiente já vistas em cinema, com um grau de precisão que raia o documentário. O armamento pareceu-me igualmente realista, os adereços e fardamentos são muito bons.
Mendes também arriscou ao colocar actores de segunda linha nas personagens principais: Dean-Charles Chapman já tinha mostrado algum talento em “Game of Thrones”, mas este foi o seu maior trabalho cinematográfico até à data, e o actor cumpriu honrosamente com aquilo que se pedia dele. George McKay também não tinha tido, até aqui, a oportunidade de mostrar talento na sétima arte, e foi capaz de nos dar uma interpretação empenhada e muito profunda da sua personagem. Os actores mais sonantes aparecem em personagens mais esporádicas: Colin Firth deu vida a um oficial britânico apenas numa cena relevante, mas curta; Daniel Mays também aparece apenas um pouco, mas faz o que precisa de fazer.
Em 30 Apr 2024