Autor: Filipe Manuel Neto
**Como peça de entretenimento funciona, se não pensarmos muito. Mas é de facto um filme cheio de problemas.**
Acabei de ver este filme agora mesmo. Sempre ouvi falar muito mal dele, mas agora, após o ter visto, interrogo-me o que de facto correu mal aqui. O filme, para ser bem honesto, é suficientemente bom para ir ao encontro das minhas expectativas (ainda que elas fossem bastante baixas, confesso), e pareceu-me uma peça de entretenimento bastante aceitável, se não estivermos para pensar muito nela e esquecermos a novela gráfica de Alan Moore. É um filme de aventuras, que cativa facilmente quem gosta deste estilo e que nos dá boas cenas de acção, com personagens que conhecemos e que está cheio daquele inconfundível charme vitoriano que ainda hoje está na moda. Afinal, que diabos sucedeu aqui para este filme ter sido um malogro tão retumbante?
Vamos começar por falar um pouco do roteiro, que reúne personagens bizarras de várias obras literárias da mesma época: Tom Sawyer, Alain Quartermain, o Capitão Nemo, o Dr. Jeckill/Sr. Hyde, a Sra. Mina Harker, o Homem Invisível (que por motivo de direitos teve de mudar de nome neste filme), Dorian Gray e James Moriarty, para citar alguns. Os conhecedores de literatura perceberam já que a amálgama de personagens diversos vindos de vários livros e autores tem muito potencial, podia originar uma espécie de “Vingadores à lá século XIX”. O problema é que o potencial se perdeu quando os roteiristas ignoraram as histórias destas personagens e criaram “figuras de acção” com o mesmo nome e alguma semelhança. Há desconfianças mútuas, tentativas de trazer ao filme alguma profundidade, mas, em geral, a história é rasa e inchada.
Ao longo do filme, observamos que não há qualquer preocupação em recriar precisamente o ambiente vitoriano. Na verdade, o filme é uma espécie de história alternativa onde até se observa até o recurso a tecnologias que só surgirão muito depois de 1900, tais como o sonar, o radar e o automóvel com caixa de velocidades automática. Esta “salada” aumenta o nível dos efeitos especiais e visuais e também a amplitude criativa dos produtores, mas não sei até que ponto é que o público a aceitou. A somar a estes problemas, ainda temos buracos de lógica no enredo e diálogos que não podiam ser mais pirosos e mal escritos.
Dirigido por Stephen Norrington, o filme parece não ter tido qualquer director ao leme: é notória a inépcia técnica, o descaso com pontos-chave do projecto e a obsessão do director com a estética vitoriana, as cenas de acção e o CGI (as únicas coisas realmente boas que o filme tem para nos dar). De facto, os aspectos visuais são incrivelmente trabalhados, e podemos ver isso pela decoração elaborada do Nautilus, pela recriação de Veneza e até pelos vestidos muito elegantes de Mina. As cenas de acção são imersivas, ao nível de um blockbuster, e cinematografia e efeitos são muito bons. A edição, por seu lado, já falha em vários momentos, dando ao filme um ritmo desigual, que acelera nas sequências de acção e morre logo a seguir.
Quanto ao elenco, o que podemos dizer? Sir Sean Connery, apesar da péssima relação de trabalho com o director e da insatisfação profunda com todo o projecto, fez um trabalho bem feito e deixou o cinema com um amargor na boca, mas o dever cumprido (este foi o seu último filme). Peta Wilson e Stuart Townsend fazem um trabalho decente, mas com pouca alma. Naseeruddin Shah ignora toda a profundidade trágica da sua personagem e é apenas um “rei das engenhocas” com uma solução para tudo. Jason Flemyng vive numa relação de amor e ódio com o seu alter-ego fictício que não faz sentido no fim do filme e Tony Curran e Shane West parecem ter sido altamente subaproveitados. E que dizer de Richard Roxburgh? Deve ter sido das piores versões de um vilão que já vi: uma catadupa de clichés e arrogância não fazem um vilão, fazem apenas um idiota.
Em 02 Jun 2024