Autor: Filipe Manuel Neto
**Este falcão ainda hoje é um clássico.**
Este é provavelmente um dos clássicos mais incontornáveis do cinema noir americano. É um estilo que ainda hoje tem apaixonados e seguidores fiéis, e que por vezes ressurge no cinema, seja sob a forma de singelas homenagens ou mesmo sob a forma de uma espécie de neo-noir que podemos ver em filmes como “Shutter Island”, “Dália Negra” ou “Mulholland Drive”.
A história deste filme gira em torno de um falcão de ouro e pedraria, um artefacto antigo que uma ordem de cavaleiros – que o filme esclarece logo de início serem “os cavaleiros templários de Malta” (irei falar acerca desta menção mais adiante) – oferece no século XVI ao imperador Carlos V em troca da soberania sobre a ilha mediterrânica de Malta. Segundo a história deste filme, o objecto perdeu-se e nunca chega às mãos do imperador. Neste filme é a busca pelo artefacto que motiva um crime que é investigado por um detective, a par com a polícia.
O maior problema que tive com este filme reside nas premissas históricas em cima das quais foi construído o roteiro. Pode parecer mesquinho, mas eu sou historiador e dou muito valor a um certo rigor histórico. Por isso, a expressão “cavaleiros templários de Malta” provoca-me calafrios de horror dado que mistura e confunde duas ordens de cavalaria que não devem ser confundidas. Uma é a Ordem do Templo, ou dos Cavaleiros Templários, que nada tem a ver com este filme, e a outra é a Ordem do Hospital, ou de Malta. Os Cavaleiros Templários foram fundados após a conquista de Jerusalém em 1099, ao cabo da Primeira Cruzada. A ordem ficou muito rica, adquiriu terras, prestígio e poder, suscitou invejas. Perseguida pelo rei francês Filipe IV, foi extinta pelo papa Clemente V em 1312. A Ordem dos Cavaleiros de São João do Hospital, ou dos Cavaleiros Hospitalários, também foi fundada aquando da conquista de Jerusalém e também enriqueceu mas nunca foi extinta e ainda existe nos dias actuais, com outro nome: Ordem Soberana e Militar de Malta. Isto advém do facto de, quando Jerusalém foi perdida pelos cristãos, os cavaleiros terem deslocado a sua sede para o Chipre, depois para a ilha de Rodes até, por fim, se instalarem na ilha de Malta em 1518. A ilha, então parte dos territórios da Coroa de Aragão, era governada pelo imperador germânico Carlos V, que era também o rei de Castela, Leão e Aragão (hoje Espanha), mas como Carlos I. Chamar templários aos cavaleiros hospitalários é, assim, um erro grosseiro de história, quase como dizer que Lincoln fundou os Estados Unidos da América, ou que Napoleão I foi o último rei de França.
O filme é dominado pela presença de Humphrey Bogart. Um grande actor da era dourada, ele é excelente neste filme e eu apenas senti dificuldades em acompanhá-lo quando ele acelerava o discurso e atropelava as palavras, tornando-se difícil entender o que ele estava a dizer. Também gostei da performance de Gladys George e Mary Astor, que nos surpreende no final com uma reviravolta interessante, mas um pouco óbvia. Por sua vez, a personagem de Peter Lorre pareceu-me um pouco caricatural. O filme tem imensos diálogos e isso pode ser um pouco maçador, principalmente por quem espera um pouco de acção, mas eu lidei bem com isso excepto no que diz respeito a Bogart, como já disse.
Tecnicamente, é um filme discreto mas muito competente e com valores de produção de qualidade. Tem uma cinematografia excelente, com ângulos de filmagem e um trabalho de câmara impecáveis e originais. O seu contraste relativamente alto fica bem na tela e torna o filme visualmente agradável. Os jogos de luz e sombra e a iluminação são verdadeiramente soberbos. Os cenários são rotineiros mas elegantes, os figurinos são excelentes com todas as gabardinas e chapéus fedora que poderíamos desejar. Claro, os cigarros e o álcool não podiam faltar, e não vejo nisso qualquer problema.
Em 09 Aug 2020