Autor: Filipe Manuel Neto
**Ainda que não seja livre de erros e problemas, é um excelente filme para ver em família.**
Martin Scorsese já nos mostrou ser um extraordinário director e bastante multifacetado. Aqui, ele embarcou num género cinematográfico pouco usual na sua filmografia — os filmes de aventuras — e dá-nos uma pequena preciosidade que vale a pena ver, não só pelo bom trabalho dos actores e pela boa história, mas também pela homenagem, merecida, a um nome por vezes pouco recordado da história do cinema: Georges Méliès. Começou a sua carreira como ilusionista de palco, mas após descobrir a magia do cinema, apostou tudo na nova arte, que ele viu como mais do que uma moda passageira: construiu um dos primeiros estúdios de cinema do mundo e ali fez vários filmes, com temas oníricos, aventureiros, que seriam a génese dos actuais filmes de sci-fi, de aventuras e até mesmo de terror. Méliès foi o primeiro a escrever roteiros de cinema, ‘storyboards’, foi o primeiro a usar efeitos especiais e visuais, o primeiro a usar filmagens rápidas, em ‘stop-motion’ e, inclusive, o primeiro a lançar filmes a cores, pintados frame a frame.
Neste filme, acompanhamos o jovem Hugo Cabret, que vive escondido na estação ferroviária de Paris Montparnasse, onde o seu tio é relojoeiro. O tio desapareceu, provavelmente bêbado, e é ele quem, secretamente, conserta os relógios. Ele herdou do seu falecido pai um autómato que tenta consertar, sabendo ser esse o desejo dele antes de morrer, mas quando o seu bloco de notas é confiscado por um vendedor de brinquedos que o toma por um vulgar ladrão, ele pede a ajuda da sobrinha deste para o recuperar.
O filme é bom. Não é perfeito, mas é seguramente uma boa aposta para um serão familiar ou de amigos. Pessoalmente, quero destacar a parte final, onde Scorsese realmente homenageia a figura de Méliès, chamando-o mesmo ao palco para uma ovação merecida, ainda que somente simbólica, digamos assim. O filme mostra-nos bem como o cinema era feito quando nasceu, e a magia que, já então, existia por trás das câmaras.
O filme conta com um bom elenco, onde se destaca a figura do jovem Asa Butterfield, num bom trabalho de interpretação. Ainda melhor do que ele, Chloe Grace Moretz rouba as atenções do público sempre que aparece, imprimindo à personagem uma jovialidade, alegria e malandrice que nos sabem bem. No tocante aos “actores adultos”, é o filme de Ben Kingsley. Ele domina as cenas onde aparece e está em grande forma e inspirado, dando-nos um dos trabalhos de maior qualidade da sua carreira como actor… e isto não é dizer pouco, observando a sua filmografia já avantajada onde se agigantam nomes como *Gandhi* ou *A Lista de Schindler*. Outro veterano que aparece por aqui é Christopher Lee, num breve cameo. Muito menos agradável do que os colegas, Sacha Baron Cohen tenta ser engraçado como polícia da gare ferroviária, mas não pode nem é capaz de o conseguir. Há vários bons actores aqui — Scorcese parece atraí-los como se ele fosse uma luz brilhante — mas fazem tão pouco que nem os vemos realmente.
Tecnicamente, é um filme cheio de valor, começando por uma excelente cinematografia, onde a cor é sabiamente aproveitada e o trabalho de filmagem é feito com mestria. O filme aproveita bem as técnicas visuais e de CGI para se tornar ainda mais bonito, assim como faz bom uso dos cenários e dos figurinos, muito bem feitos e repletos de detalhes. A edição foi bem feita, mas o filme, ainda assim, tem alguns problemas de ritmo: se o princípio parece estar com dificuldades em dizer abertamente ao que vem, o resto do filme melhora substancialmente, agarra a história, mas ainda se demora muito nalgumas cenas sem isso parecer justificar-se. Há ainda várias sub-tramas, principalmente associadas às pessoas que vivem ou trabalham na gare, que não são desenvolvidas adequadamente e ficam perdidas, como pontas soltas. A banda sonora, assinada por Howard Shore, é realmente muito boa, com o uso do acordeão a dar-lhe um cheirinho realmente muito parisiense e agradável aos ouvidos.
Em 19 Sep 2021